Thursday, February 23, 2006

CÉLIA BELMIRO: "TEMOS QUE TER MAIS CLAREZA DE QUAL É O PROFESSOR QUE DESEJAMOS FORMAR"

A imagem na educação é o foco principal da investigadora Célia Abicalil Belmiro (foto). Carioca, Formada em Letras, ela é professora do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Faculdade de Educação da UFMG -Universidade Federal de Minas Gerais. Em 1992 concluiu um mestrado e escreveu uma dissertação sobre a fotografia. Atualmente está morando em Paris. Faz um estágio na École des Hautes Études en Sciences Sociales, por conta do seu doutoramento na UFF - Universidade Federal Fluminense, que tem como objetivo analisar as relações entre imagens, texto e leituras nos livros de alfabetização. Célia tem vários artigos científicos publicados e foi convidada a dar seu contributo em diversas publicações da área de educação. Participou também de congressos nacionais e internacionais. Nesta entrevista Célia fala da relação da imagem com o processo do conhecimento, da importância da linguagem visual, da relação da educação com a comunicação e avalia a escola hoje. A conversa ocorreu em Portugal, onde a investigadora veio participar de um colóquio internacional sobre currículo. Na verdade foi um bate-papo informal que transcrevo aqui.


QUAL A FORÇA DE IMAGEM HOJE NA EDUCAÇÃO?

Não somente na educação como também no cotidiano do aluno, principalmente quando a gente observa que ele não é um sujeito da educação mas sim um sujeito social, histórico, formado por diferentes linguagens. Ele é formado inclusive por imagens, e a escola não tem que brigar com a televisão, com o cinema, com a publicidade, com os jogos, com a Internet. A escola tem que olhar, saber que isso existe. Na minha pesquisa eu procuro analisar essas imagens e percebo que elas são muito mais ágeis do que o texto verbal. A racionalidade do texto verbal se dirige para um tipo de cognição que é diferente das imagens que são muito mais imediatas. No texto verbal você precisa de uma linearidade.

O TEXTO VERBAL PERMITE UMA REFLEXÃO QUE A IMAGEM NÃO PERMITE. VOCÊ ACHA QUE ISSO PODE ATRAPALHAR A FORMAÇÃO DO SENSO CRÍTICO NO ALUNO?

Não é isso que atrapalha. O que atrapalha é como isso é dado para o aluno. O grande problema da escola são as metodologias. O sentido pedagógico da escola, que é o sentido da educação, exige um certo tipo de organização, de discriminação de conteúdos, de formação do professor. Não é o mesmo caso da televisão, do cinema etc. Não adianta pegar um texto de literatura e obrigar o aluno a ler, simplesmente. Ele vai ler porque vai precisar fazer uma prova, porque o professor vai fazer uma pergunta, vai ler o primeiro capítulo porque vai precisar ler o segundo daqui a dois meses. Portanto existe todo um arranjo que coloca o aluno em contato não só com uma literatura, mas sim com uma proposta metodológica de leitura literária na escola.

ISSO TEM SE DESENVOLVIDO NO BRASIL?

Bastante. Existem grupos muito sérios que trabalham com o letramento literário, como o grupo do Ceale, da Faculdade de Educação da UFMG.


AQUELA IMPOSIÇÃO QUE DIZ “LEIA ESTE LIVRO DE 500 PÁGINAS E FAÇA UMA RESENHA” NÃO FUNCIONA MAIS?

Ela existe ainda, mas hoje em dia não dá para exigir a leitura de 500 páginas. O aluno tem que ler por exemplo 60 páginas, mas mesmo assim ele reclama. Só que eu acho que a reclamação não é pelo fato de ter que ler, mas sim porque aquela leitura é muito desagradável para eles. Eu já vi estudantes com livros que eu não imaginava que eles iriam ler, mas eles estavam lendo porque tinham interesse. Imagine obrigar um menino que está no centro urbano do Rio de Janeiro a ler A Moreninha. A Moreninha já passou, é uma outra história. Poderia ser muito interessante ler A Moreninha se fosse por outro caminho. Na minha época Iracema era importante. Eu li, fiz um vestibular sobre o livro, e hoje também eles pedem. Tem alguma coisa errada, não tem? Não é o aluno não gostar de ler. Está errado o processo da escola com o conteúdo que ela quer passar.

COMO SE FAZ ENTÃO? NÃO SE LÊ MAIS IRACEMA, POR EXEMPLO, E PROCURA-SE NOVAS OBRAS, MAIS ATUAIS?

Eu acho que sim. Começa por aí para depois ler Iracema.

ENTÃO NÃO É PRECISO PEDIR A LEITURA DOS CLÁSSICOS?

Eu acho que pode ler mas não precisa ler logo de cara. Por quê um livro vira clássico? Essa é uma outra questão que a literatura vem discutindo hoje. O clássico é temporal, histórico. Hoje uma coisa é clássica mas não era antes. Passou a ser por outros motivos, editoriais, literários e até extra-literários. Os livros passam a ser clássicos por uma certa escolha de um certo momento, por algum acontecimento e pela qualidade literária. Alguns clássicos persistem até hoje, outros acabaram. Machado de Assis continua sendo uma leitura interessantíssima, mas eu não vou dar para os meus alunos de segundo grau uma tarefa para que leiam Machado de Assis, porque hoje existem outras coisas. Eles terão que ler Machado de Assis, porque é uma leitura formativa no sentido cultural da pessoa, mas eu acho que há tempos de leitura específicos. Eu brigo com esses clássicos sim. Eu acho que tem que começar a ler alguma coisa que chame atenção, que o aluno goste. Ninguém lê por obsessão simplesmente. Essa geração nova liga a televisão, então a gente tem que discutir com eles o que está na televisão para que tenham uma visão crítica. Na minha pesquisa eu tento explicitar como é que acontece essa relação de imagem e os textos literários dos livros didáticos de português.

QUAL É ESSA RELAÇÃO?

Existem alguns livros que propõem leituras de obras de arte, pinturas de Van Gogh, Picasso, esculturas de Rodin. Isso vem de 1998 para cá, ou seja, é muito novo.

TEM RESULTADO?

Não sei se tem o resultado que a proposta espera porque esbarra em uma coisa complicadíssima: o conhecimento do professor para desenvolver uma metodologia de leitura daquelas imagens. Muitos professores não sabem quem é Van Gogh, Picasso, Michelângelo. Não adianta colocar isso nos livros e achar que o docente vai desenvolver uma visão estética e cultural do aluno a partir das perguntas que se faz ali.

VOCÊ ACHA QUE A TELEVISÃO É O PRINCIPAL FATOR QUE INFLUENCIA A EXISTÊNCIA DA IMAGEM NO LIVRO DIDÁTICO HOJE?

Não só a televisão influencia, mas também os out-doors, o vídeo game, a Internet, os clips, os mangás. São muitas coisas. A função da escola é ter uma visão de estranhamento diante do mundo. É possível orientar o aluno para certos conhecimentos, do ponto de vista do discurso, da retórica, utilizando, por exemplo, a exibição de filmes. A partir da discussão da sintaxe e da estruturas desses filmes eles passam a ter uma visão muito mais crítica frente às imagens.

MUITAS ESCOLAS SE PREOCUPAM EM ADQUIRIR AS NOVAS TECNOLOGIAS. VOCÊ ACHA QUE AS ESCOLAS QUE ESTÃO SE EQUIPANDO DESSA FORMA ESTÃO PREOCUPADAS COM METODOLOGIA E A PEDAGOGIA NECESSÁRIA PARA A FORMAÇÃO DO ALUNO OU ISSO É DEIXADO DE LADO?

Muitas vezes a escola fica achando que o instrumento é suficiente em relação ao conteúdo. Isso é um problema sério na área da educação. O Roger Chartier diz que o livro como tal começou quando ele deixou de ser um rolo para ser um códex. Então, devido a um novo formato, a maneira de ler mudou. Quando surge a imprensa, com Gutenberg, o livro fica mais preto e branco e deixa de ter imagem. Ele só volta a ter imagem com a litografia, o que ocorre no século XIX, tornando possível uma novo diálogo com essa imagem. Então você vê como o suporte é importante para a compreensão do que está acontecendo. Com o computador você tem uma história, diferente do livro. Está ali outra maneira de se trabalhar com aprendizagem. O suporte estrutura uma nova forma de se aprender as coisas do mundo.

A INTERNET POSSIBILIDA INTERATIVIDADE. ISSO MUDA A LÓGICA DE COMUNICAÇÃO E DE CONSTRUÇÃO?

Muda a lógica e a construção do conhecimento, que passa a ser estruturado de forma diferente. Então, como muda a estruturação do conhecimento, muda tudo.

OS LIVROS DIDÁTICOS JÁ ENTRARAM NESSA ERA DE INTERATIVIDADE?

Não. O livro didático é igual a uma caneta, pode haver variações mas o formato é aquele.

JÁ EXISTE O LIVRO VIRTUAL, QUE NÃO É DE PAPEL. VOCÊ ACREDITA QUE O LIVRO DIDÁTICO COMO ELE É HOJE PODE SE EXTINGUIR?

Se for o caso, não por esse motivo. Eu acho que no momento que estamos vivendo ele está cada dia mais forte.

POR QUÊ?

No Brasil a questão social é muito violenta. O livro didático, em muitas famílias de classe popular, é o único livro que se têm acesso. Ele tem uma função importantíssima nas famílias brasileiras. Eu acho que ele não acaba tão cedo e nem sei se precisa acabar. O livro didático tem uma história muito específica e vem se transformando ao longo do tempo. No início ele era livro de leitura. Eram textos, sem uma estruturação de conhecimentos por gradação, por séries, por dificuldades, por conteúdo específico. Hoje ele é um apoio fundamental ao professor porque tem uma metodologia que permite a transmissão do conhecimento.


O MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO FAZ ANUALMENTE A SELEÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS NO BRASIL. COMO FUNCIONA ESSE TRABALHO?

O Ministério da Educação convida especialistas para participar de uma comissão de avaliação dos livros didáticos, para que eles possam ser distribuídos nas escolas públicas do país. Existem critérios que são de exclusão como o preconceito racial, tendências religiosas, tendências políticas e questões de ordem teórico-metodológicas também. O livro não pode ter erros conceituais, não se pode dizer, por exemplo que verso é aquela frase que não vai até o final da linha. Isso não é verso mas eu já vi escrito.

NO CASO DAS IMAGENS VOCÊ JÁ OBSERVOU NOS LIVROS ESSES ERROS METODOLÓGICOS OU DISCRIMINATÓRIOS?

Já houve bastante mas hoje em dia essa preocupação ficou muito patente. O politicamente correto ficou muito forte. Nas primeiras análises dos livros houve muita exclusão.

ISSO É UMA COISA SÓLIDA NO BRASIL OU VARIA DE ACORDO COM OS GOVERNOS?

O Plano Nacional do Livro Didático começou em 1985 (Governo José Sarney). No início a política era: vamos dar livros didáticos de graça para os professores. Aí os docentes escolhiam e o governo comprava. Depois surgiu uma lista de livros onde o professor escolhia o que lhe interessava. Só na década de 90 é que se começa a fazer uma avaliação dos livros e isso vem se mantendo nos últimos governos. Aos poucos o modelo vai se aperfeiçoando. O interessante é que no início das avaliações não havia nada que falasse de imagens. Trabalhava-se apenas a questão técnica, como observar se a imagem estava nítida, se não estava borrada. Não se avaliava o conteúdo. Na última análise já vem um item que avalia a utilidade didática da imagem.

ESSA PREOCUPAÇÃO COM A IMAGEM É RECENTE ENTÃO?

A partir dos anos 60, quando a ideia da comunicação se torna muito presente no espaço da educação e da escola, as imagens passam a despertar atenção. Nos anos 70 se brigou muito com a televisão. Hoje apropria-se da televisão quando interessa. Pode-se fazer, por exemplo, programas educativos para a televisão que vão passar no Brasil todo.

A ESCOLA QUE BRIGOU COM A TELEVISÃO HOJE BRIGA COM A INTERNET?

Eu não sei se a escola briga, mas o espaço académico sobre a escola briga com a Internet, com o computador. Porque também não se propõe uma metodologia. Qual é o professor que tem formação em Internet? Existe uma faculdade de educação onde você se apropria dos instrumentos da Internet, do espaço midiático? Não. As pessoas se formam em português, literatura. Aí colocam os computadores, chamam um técnico e ele passa a ser o professor.

COMO É POSSÍVEL SOLUCIONAR ISSO?

Eu acho que a grande questão é a formação de professores. Nós temos que ter mais clareza de qual é o professor que desejamos formar. É preciso uma formação continuada, que é mais importante do que você colocar os materiais dentro da escola. Deve haver programas de formação de professores no local de trabalho, porque é lá que ele vai mudar as coisas.

COMO É TRABALHAR A FORMAÇÃO NA ESCOLA PÚBLICA, ONDE MUITAS VEZES OS ALUNOS SÃO VÍTIMAS DO SISTEMA SOCIAL DE UM PAÍS ONDE HÁ MUITA CONCENTRAÇÃO DE RENDA?

A gente trabalha na escola pública com um problema social, não tenha dúvida. E eu acho inclusive que as imagens que hoje permeiam a escola e a vida do aluno fora da escola não devem ser esquecidas. Antes eu trabalhava com língua portuguesa, hoje eu trabalho com linguagem. Linguagem verbal, visual. E eu acho que aí está a grande questão para a formação do aluno. É transformar essas imagens em imagens de discussão para eles.

VOCÊ CRIOU UMA DISCIPLINA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG) CHAMADA COMUNICAÇÃO EDUCATIVA E CONVIDOU PARA DAR AULAS COM VOCÊ UM PROFESSOR DE COMUNICAÇÃO. ESSA CADEIRA, ANTES OPTATIVA, ACABOU SE TORNANDO CURRICULAR. POR QUÊ ALIAR EDUCAÇÃO AO JORNALISMO?

Eu sempre achei muito importante na formação do pedagogo que ele tivesse essas perspectivas das imagens, da comunicação, não simplesmente a partir de uma visão crítica, de discussão ideológica, mas a partir de uma discussão do ponto de vista da linguagem. Eu achava que os profissionais da educação deveriam ter essa visão ampliada do que é o espaço da comunicação, da visualidade. Era preciso então inserir o que está acontecendo fora no trabalho deles, por isso surgiu essa disciplina. Então eu convidei um amigo, o professor de televisão e vídeo no Departamento de Comunicação Social, Delfim Afonso Júnior. Como ele também achava que na área da comunicação eles tinham que ter também uma perspectiva que as imagens formam pessoas, ele precisava de um meio da educação que cortasse um pouco essa visão instrumental da comunicação.

QUE CONCLUSÕES VOCÊS CHEGARAM?

Eu tenho algumas observações. Primeiro que é um casamento complicadíssimo, porque cada um tem a sua igrejinha. Por exemplo: uma aluna minha não gostou da interferência de um aluno da comunicação porque ele fez uma crítica à escola. Ela disse para ele: “você não pode falar da escola porque você não sabe o que acontece lá dentro”. Eu interferi e falei: “então quer dizer que você também não pode falar mal da televisão?” Por quê isso? É preciso quebrar esse espaço cristalizado de poder do conhecimento.

ENTÃO ESSE CASAMENTO, MESMO SENDO DIFÍCIL, É POSSÍVEL?

Completamente. Eu acho fundamental até. A comunicação não é a escola mas ela tem um aspecto formativo.

PARA ONDE CAMINHA A EDUCAÇÃO?

Eu não tenho essa resposta. A educação não é um corpo fechado de conhecimento, ela não é uma física que você pára e constrói uma teoria. A educação é porosa. Ela tem um mundo onde vai se amparando e captando aquilo para ela. Ela é dinâmica o tempo todo.

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