Thursday, February 23, 2006

CÉLIA BELMIRO: "TEMOS QUE TER MAIS CLAREZA DE QUAL É O PROFESSOR QUE DESEJAMOS FORMAR"

A imagem na educação é o foco principal da investigadora Célia Abicalil Belmiro (foto). Carioca, Formada em Letras, ela é professora do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Faculdade de Educação da UFMG -Universidade Federal de Minas Gerais. Em 1992 concluiu um mestrado e escreveu uma dissertação sobre a fotografia. Atualmente está morando em Paris. Faz um estágio na École des Hautes Études en Sciences Sociales, por conta do seu doutoramento na UFF - Universidade Federal Fluminense, que tem como objetivo analisar as relações entre imagens, texto e leituras nos livros de alfabetização. Célia tem vários artigos científicos publicados e foi convidada a dar seu contributo em diversas publicações da área de educação. Participou também de congressos nacionais e internacionais. Nesta entrevista Célia fala da relação da imagem com o processo do conhecimento, da importância da linguagem visual, da relação da educação com a comunicação e avalia a escola hoje. A conversa ocorreu em Portugal, onde a investigadora veio participar de um colóquio internacional sobre currículo. Na verdade foi um bate-papo informal que transcrevo aqui.


QUAL A FORÇA DE IMAGEM HOJE NA EDUCAÇÃO?

Não somente na educação como também no cotidiano do aluno, principalmente quando a gente observa que ele não é um sujeito da educação mas sim um sujeito social, histórico, formado por diferentes linguagens. Ele é formado inclusive por imagens, e a escola não tem que brigar com a televisão, com o cinema, com a publicidade, com os jogos, com a Internet. A escola tem que olhar, saber que isso existe. Na minha pesquisa eu procuro analisar essas imagens e percebo que elas são muito mais ágeis do que o texto verbal. A racionalidade do texto verbal se dirige para um tipo de cognição que é diferente das imagens que são muito mais imediatas. No texto verbal você precisa de uma linearidade.

O TEXTO VERBAL PERMITE UMA REFLEXÃO QUE A IMAGEM NÃO PERMITE. VOCÊ ACHA QUE ISSO PODE ATRAPALHAR A FORMAÇÃO DO SENSO CRÍTICO NO ALUNO?

Não é isso que atrapalha. O que atrapalha é como isso é dado para o aluno. O grande problema da escola são as metodologias. O sentido pedagógico da escola, que é o sentido da educação, exige um certo tipo de organização, de discriminação de conteúdos, de formação do professor. Não é o mesmo caso da televisão, do cinema etc. Não adianta pegar um texto de literatura e obrigar o aluno a ler, simplesmente. Ele vai ler porque vai precisar fazer uma prova, porque o professor vai fazer uma pergunta, vai ler o primeiro capítulo porque vai precisar ler o segundo daqui a dois meses. Portanto existe todo um arranjo que coloca o aluno em contato não só com uma literatura, mas sim com uma proposta metodológica de leitura literária na escola.

ISSO TEM SE DESENVOLVIDO NO BRASIL?

Bastante. Existem grupos muito sérios que trabalham com o letramento literário, como o grupo do Ceale, da Faculdade de Educação da UFMG.


AQUELA IMPOSIÇÃO QUE DIZ “LEIA ESTE LIVRO DE 500 PÁGINAS E FAÇA UMA RESENHA” NÃO FUNCIONA MAIS?

Ela existe ainda, mas hoje em dia não dá para exigir a leitura de 500 páginas. O aluno tem que ler por exemplo 60 páginas, mas mesmo assim ele reclama. Só que eu acho que a reclamação não é pelo fato de ter que ler, mas sim porque aquela leitura é muito desagradável para eles. Eu já vi estudantes com livros que eu não imaginava que eles iriam ler, mas eles estavam lendo porque tinham interesse. Imagine obrigar um menino que está no centro urbano do Rio de Janeiro a ler A Moreninha. A Moreninha já passou, é uma outra história. Poderia ser muito interessante ler A Moreninha se fosse por outro caminho. Na minha época Iracema era importante. Eu li, fiz um vestibular sobre o livro, e hoje também eles pedem. Tem alguma coisa errada, não tem? Não é o aluno não gostar de ler. Está errado o processo da escola com o conteúdo que ela quer passar.

COMO SE FAZ ENTÃO? NÃO SE LÊ MAIS IRACEMA, POR EXEMPLO, E PROCURA-SE NOVAS OBRAS, MAIS ATUAIS?

Eu acho que sim. Começa por aí para depois ler Iracema.

ENTÃO NÃO É PRECISO PEDIR A LEITURA DOS CLÁSSICOS?

Eu acho que pode ler mas não precisa ler logo de cara. Por quê um livro vira clássico? Essa é uma outra questão que a literatura vem discutindo hoje. O clássico é temporal, histórico. Hoje uma coisa é clássica mas não era antes. Passou a ser por outros motivos, editoriais, literários e até extra-literários. Os livros passam a ser clássicos por uma certa escolha de um certo momento, por algum acontecimento e pela qualidade literária. Alguns clássicos persistem até hoje, outros acabaram. Machado de Assis continua sendo uma leitura interessantíssima, mas eu não vou dar para os meus alunos de segundo grau uma tarefa para que leiam Machado de Assis, porque hoje existem outras coisas. Eles terão que ler Machado de Assis, porque é uma leitura formativa no sentido cultural da pessoa, mas eu acho que há tempos de leitura específicos. Eu brigo com esses clássicos sim. Eu acho que tem que começar a ler alguma coisa que chame atenção, que o aluno goste. Ninguém lê por obsessão simplesmente. Essa geração nova liga a televisão, então a gente tem que discutir com eles o que está na televisão para que tenham uma visão crítica. Na minha pesquisa eu tento explicitar como é que acontece essa relação de imagem e os textos literários dos livros didáticos de português.

QUAL É ESSA RELAÇÃO?

Existem alguns livros que propõem leituras de obras de arte, pinturas de Van Gogh, Picasso, esculturas de Rodin. Isso vem de 1998 para cá, ou seja, é muito novo.

TEM RESULTADO?

Não sei se tem o resultado que a proposta espera porque esbarra em uma coisa complicadíssima: o conhecimento do professor para desenvolver uma metodologia de leitura daquelas imagens. Muitos professores não sabem quem é Van Gogh, Picasso, Michelângelo. Não adianta colocar isso nos livros e achar que o docente vai desenvolver uma visão estética e cultural do aluno a partir das perguntas que se faz ali.

VOCÊ ACHA QUE A TELEVISÃO É O PRINCIPAL FATOR QUE INFLUENCIA A EXISTÊNCIA DA IMAGEM NO LIVRO DIDÁTICO HOJE?

Não só a televisão influencia, mas também os out-doors, o vídeo game, a Internet, os clips, os mangás. São muitas coisas. A função da escola é ter uma visão de estranhamento diante do mundo. É possível orientar o aluno para certos conhecimentos, do ponto de vista do discurso, da retórica, utilizando, por exemplo, a exibição de filmes. A partir da discussão da sintaxe e da estruturas desses filmes eles passam a ter uma visão muito mais crítica frente às imagens.

MUITAS ESCOLAS SE PREOCUPAM EM ADQUIRIR AS NOVAS TECNOLOGIAS. VOCÊ ACHA QUE AS ESCOLAS QUE ESTÃO SE EQUIPANDO DESSA FORMA ESTÃO PREOCUPADAS COM METODOLOGIA E A PEDAGOGIA NECESSÁRIA PARA A FORMAÇÃO DO ALUNO OU ISSO É DEIXADO DE LADO?

Muitas vezes a escola fica achando que o instrumento é suficiente em relação ao conteúdo. Isso é um problema sério na área da educação. O Roger Chartier diz que o livro como tal começou quando ele deixou de ser um rolo para ser um códex. Então, devido a um novo formato, a maneira de ler mudou. Quando surge a imprensa, com Gutenberg, o livro fica mais preto e branco e deixa de ter imagem. Ele só volta a ter imagem com a litografia, o que ocorre no século XIX, tornando possível uma novo diálogo com essa imagem. Então você vê como o suporte é importante para a compreensão do que está acontecendo. Com o computador você tem uma história, diferente do livro. Está ali outra maneira de se trabalhar com aprendizagem. O suporte estrutura uma nova forma de se aprender as coisas do mundo.

A INTERNET POSSIBILIDA INTERATIVIDADE. ISSO MUDA A LÓGICA DE COMUNICAÇÃO E DE CONSTRUÇÃO?

Muda a lógica e a construção do conhecimento, que passa a ser estruturado de forma diferente. Então, como muda a estruturação do conhecimento, muda tudo.

OS LIVROS DIDÁTICOS JÁ ENTRARAM NESSA ERA DE INTERATIVIDADE?

Não. O livro didático é igual a uma caneta, pode haver variações mas o formato é aquele.

JÁ EXISTE O LIVRO VIRTUAL, QUE NÃO É DE PAPEL. VOCÊ ACREDITA QUE O LIVRO DIDÁTICO COMO ELE É HOJE PODE SE EXTINGUIR?

Se for o caso, não por esse motivo. Eu acho que no momento que estamos vivendo ele está cada dia mais forte.

POR QUÊ?

No Brasil a questão social é muito violenta. O livro didático, em muitas famílias de classe popular, é o único livro que se têm acesso. Ele tem uma função importantíssima nas famílias brasileiras. Eu acho que ele não acaba tão cedo e nem sei se precisa acabar. O livro didático tem uma história muito específica e vem se transformando ao longo do tempo. No início ele era livro de leitura. Eram textos, sem uma estruturação de conhecimentos por gradação, por séries, por dificuldades, por conteúdo específico. Hoje ele é um apoio fundamental ao professor porque tem uma metodologia que permite a transmissão do conhecimento.


O MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO FAZ ANUALMENTE A SELEÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS NO BRASIL. COMO FUNCIONA ESSE TRABALHO?

O Ministério da Educação convida especialistas para participar de uma comissão de avaliação dos livros didáticos, para que eles possam ser distribuídos nas escolas públicas do país. Existem critérios que são de exclusão como o preconceito racial, tendências religiosas, tendências políticas e questões de ordem teórico-metodológicas também. O livro não pode ter erros conceituais, não se pode dizer, por exemplo que verso é aquela frase que não vai até o final da linha. Isso não é verso mas eu já vi escrito.

NO CASO DAS IMAGENS VOCÊ JÁ OBSERVOU NOS LIVROS ESSES ERROS METODOLÓGICOS OU DISCRIMINATÓRIOS?

Já houve bastante mas hoje em dia essa preocupação ficou muito patente. O politicamente correto ficou muito forte. Nas primeiras análises dos livros houve muita exclusão.

ISSO É UMA COISA SÓLIDA NO BRASIL OU VARIA DE ACORDO COM OS GOVERNOS?

O Plano Nacional do Livro Didático começou em 1985 (Governo José Sarney). No início a política era: vamos dar livros didáticos de graça para os professores. Aí os docentes escolhiam e o governo comprava. Depois surgiu uma lista de livros onde o professor escolhia o que lhe interessava. Só na década de 90 é que se começa a fazer uma avaliação dos livros e isso vem se mantendo nos últimos governos. Aos poucos o modelo vai se aperfeiçoando. O interessante é que no início das avaliações não havia nada que falasse de imagens. Trabalhava-se apenas a questão técnica, como observar se a imagem estava nítida, se não estava borrada. Não se avaliava o conteúdo. Na última análise já vem um item que avalia a utilidade didática da imagem.

ESSA PREOCUPAÇÃO COM A IMAGEM É RECENTE ENTÃO?

A partir dos anos 60, quando a ideia da comunicação se torna muito presente no espaço da educação e da escola, as imagens passam a despertar atenção. Nos anos 70 se brigou muito com a televisão. Hoje apropria-se da televisão quando interessa. Pode-se fazer, por exemplo, programas educativos para a televisão que vão passar no Brasil todo.

A ESCOLA QUE BRIGOU COM A TELEVISÃO HOJE BRIGA COM A INTERNET?

Eu não sei se a escola briga, mas o espaço académico sobre a escola briga com a Internet, com o computador. Porque também não se propõe uma metodologia. Qual é o professor que tem formação em Internet? Existe uma faculdade de educação onde você se apropria dos instrumentos da Internet, do espaço midiático? Não. As pessoas se formam em português, literatura. Aí colocam os computadores, chamam um técnico e ele passa a ser o professor.

COMO É POSSÍVEL SOLUCIONAR ISSO?

Eu acho que a grande questão é a formação de professores. Nós temos que ter mais clareza de qual é o professor que desejamos formar. É preciso uma formação continuada, que é mais importante do que você colocar os materiais dentro da escola. Deve haver programas de formação de professores no local de trabalho, porque é lá que ele vai mudar as coisas.

COMO É TRABALHAR A FORMAÇÃO NA ESCOLA PÚBLICA, ONDE MUITAS VEZES OS ALUNOS SÃO VÍTIMAS DO SISTEMA SOCIAL DE UM PAÍS ONDE HÁ MUITA CONCENTRAÇÃO DE RENDA?

A gente trabalha na escola pública com um problema social, não tenha dúvida. E eu acho inclusive que as imagens que hoje permeiam a escola e a vida do aluno fora da escola não devem ser esquecidas. Antes eu trabalhava com língua portuguesa, hoje eu trabalho com linguagem. Linguagem verbal, visual. E eu acho que aí está a grande questão para a formação do aluno. É transformar essas imagens em imagens de discussão para eles.

VOCÊ CRIOU UMA DISCIPLINA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG) CHAMADA COMUNICAÇÃO EDUCATIVA E CONVIDOU PARA DAR AULAS COM VOCÊ UM PROFESSOR DE COMUNICAÇÃO. ESSA CADEIRA, ANTES OPTATIVA, ACABOU SE TORNANDO CURRICULAR. POR QUÊ ALIAR EDUCAÇÃO AO JORNALISMO?

Eu sempre achei muito importante na formação do pedagogo que ele tivesse essas perspectivas das imagens, da comunicação, não simplesmente a partir de uma visão crítica, de discussão ideológica, mas a partir de uma discussão do ponto de vista da linguagem. Eu achava que os profissionais da educação deveriam ter essa visão ampliada do que é o espaço da comunicação, da visualidade. Era preciso então inserir o que está acontecendo fora no trabalho deles, por isso surgiu essa disciplina. Então eu convidei um amigo, o professor de televisão e vídeo no Departamento de Comunicação Social, Delfim Afonso Júnior. Como ele também achava que na área da comunicação eles tinham que ter também uma perspectiva que as imagens formam pessoas, ele precisava de um meio da educação que cortasse um pouco essa visão instrumental da comunicação.

QUE CONCLUSÕES VOCÊS CHEGARAM?

Eu tenho algumas observações. Primeiro que é um casamento complicadíssimo, porque cada um tem a sua igrejinha. Por exemplo: uma aluna minha não gostou da interferência de um aluno da comunicação porque ele fez uma crítica à escola. Ela disse para ele: “você não pode falar da escola porque você não sabe o que acontece lá dentro”. Eu interferi e falei: “então quer dizer que você também não pode falar mal da televisão?” Por quê isso? É preciso quebrar esse espaço cristalizado de poder do conhecimento.

ENTÃO ESSE CASAMENTO, MESMO SENDO DIFÍCIL, É POSSÍVEL?

Completamente. Eu acho fundamental até. A comunicação não é a escola mas ela tem um aspecto formativo.

PARA ONDE CAMINHA A EDUCAÇÃO?

Eu não tenho essa resposta. A educação não é um corpo fechado de conhecimento, ela não é uma física que você pára e constrói uma teoria. A educação é porosa. Ela tem um mundo onde vai se amparando e captando aquilo para ela. Ela é dinâmica o tempo todo.

Wednesday, February 08, 2006

UM ESPAÇO PARA QUEM TEM O QUE FALAR

Estréia hoje o Ponto de Análises Entrevistas, mais uma página do blog Ponto de Análises. A idéia é preencher este espaço das ondas virtuais com as conclusões e pensamentos de profissionais, investigadores acadêmicos, estudiosos. Eles ocuparão as linhas da página, possibilitando a nós aprendermos mais com quem tem o que dizer. Espero que agrade. E se não agradar, por favor, use a interatividade que a Internet permite e fique a vontade para fazer as críticas e constestações, que sempre enriquecem os debates.

FELISBELA LOPES: "A INFORMAÇÃO ESTÁ A SERVIÇO DO VOYEURISMO"

Ela é licenciada em ensino de Português-Francês, conhecedora do latim, professora de jornalismo da Universidade do Minho, investigadora da área audiovisual do Projecto Mediascópio - que estuda o jornalismo e as tendências dos media portugueses, autora de dois livros e diversos artigos e crónicas sobre o jornalismo. Foi colaboradora do jornal Público, do departamento de informação da Rádio Universitária do Minho e escreve para o blog Jornalismo e Comunicação. Recentemente concluiu o doutoramento com uma tese que investigou dez anos de televisão em Portugal, onde analisou a TV pública (RTP) e os canais privados do país (SIC E TVI). Felisbela Lopes (foto) é quem estreia o Ponto de Análises Entrevistas. Em tom descontraído, e sempre extremamente simpática, Felisbela falou durante quase uma hora sobre seus estudos, que passam não apenas pela TV em Portugal, mas abrangem o veículo em si e suas relações com a política, economia e sociedade.

(Obs: Manteve-se aqui o vocabulário e a ortografia utilizados em Portugal)

QUAL FOI A SUA METODOLOGIA PARA ANALISAR DEZ ANOS DE TELEVISÃO EM PORTUGAL?

A ideia básica que precedeu ao arranque do trabalho era saber que tipo de espaço público os canais generalistas portugueses construíam através da informação semanal difundida em horário nobre. O meu objecto de estudo foram os programas de informação semanal emitidos pela RTP, SIC E TVI, depois dos noticiários da noite. O período de análise foi 1993 a 2003. Por quê? Porque 93 foi o primeiro ano de coabitação entre o sector público e o privado. Isso fez com que eu pudesse estudar a partir do zero a evolução da programação informativa dos canais generalistas.


NA SUA TESE VOCÊ CITA, POR EXEMPLO, UMBERTO ECO, QUE FAZ UMA CLASSIFICAÇÃO ENTRE A PALEOTELEVISÃO E A NEOTELEVISÃO. ESSA CLASSIFICAÇÃO APLICA-SE A PORTUGAL?

Umberto Eco faz uma divisão com esses termos. Para ele a paleotelevisão corresponde à fase de monopólio em que a televisão seria sobretudo uma janela que mostrava às pessoas a realidade não como era, mas tal qual deveria ser e em que as grelhas (grades de programação) teriam espaços para informação, formação e entretenimento, não havendo qualquer contaminação. A essa fase sucederia uma outra, da neotelevisão que, segundo Umberto Eco, corresponderia à fase da privatização, do aparecimento dos canais privados, que levaria a uma substituição da televisão-janela por uma televisão-espelho, em que as pessoas ao olharem para o ecrã poder-se-iam ver ali reflectidas. Posteriormente, Eliseo Véron (pesquisador argentino) veio acrescentar uma terceira fase, em que os telespectadores seriam parte integrante da produção televisiva, ou seja, haveria uma interactividade entre a televisão e as audiências. Essa terceira fase, segundo Verón, corresponderia ao aparecimento dos reality shows tipo Big Brother. Mas se aplicarmos esse conceito à programação informativa ele não bate certo, porque o surgimento da televisão privada em Portugal não corresponde à neotelevisao que descreve Umberto Eco.


EM OUTROS PAÍSES PODERIA CORRESPONDER?

Não sei porque não estudei a situação em outros países, mas sei que em França Sébastien Rouquette estudou coisas muito parecidas com o que eu analisei em Portugal e não encontrou o retrato de Umberto Eco. Eu acredito que o investigador italiano achou que essa profusão de reality shows - que as TVs privadas puseram no ar no início das suas transmissões e que, de facto, traziam as pessoas para dentro e falava da vida cotidiana - fez com que ele se entusiasmasse muito e visse aí um espelho da vida das pessoas. Mas eu acho que ele esqueceu de ver outra programação, nomeadamente o campo da informação semanal, que não é assim. É evidente que, no campo da informação semanal nós temos algumas evoluções do género. Há os debates por um lado - e eles são mesmo informação - apresentados por jornalistas e que seguem critérios editoriais. Depois há um conjunto de programas que misturam debates com reportagens. O aparecimento das TVs privadas fez expandir um jornalismo que estava estagnado em Portugal, o jornalismo policial. Aliás, nos anos 90, em termos de programação informativa, esses foram os programas que mais tiveram sucesso junto às audiências. Outro filão importante foi o trabalho de grandes reportagens, que também tiveram uma evolução, dos macrotemas para temas do quotidiano. Por exemplo, no início dos anos 90 quando queríamos fazer uma grande reportagem nós íamos para o estrangeiro. Portugal não comportava temas para isso. Mas as coisas foram mudando e, no final dos anos 90, um tema de grande reportagem era, por exemplo, uma aldeia pequena, com poucas pessoas, onde havia uma percentagem grande de homens solteiros.


NA VISÃO JORNALÍSTICA O PAÍS ENTÃO PASSOU A OLHAR-SE MELHOR?

Exacto, passou olhar-se melhor e passou a construir temas do quotidiano nos programas de informação semanal. Mas, paralelamente a isso, há um género de programas que é de contaminação. Programas que não percebemos muito bem se são de entretenimento ou de informação. Numa primeira visão eles parecem de informação, mas olhando com atenção parece que não são. Por exemplo, havia um programa chamado A Cadeira do Poder, que “elegia” semanalmente por meio do “voto” dos telespectadores um primeiro-ministro. E você diz: "então é um concurso!" Mas eu digo: os concorrentes eram pessoas da classe política e um deles foi realmente primeiro-ministro recentemente, que foi o Pedro Santana Lopes. A leitura desse programa foi muito polémica . A Cadeira do Poder tinha um noticiário que era apresentado por uma modelo, mas tinha peças que seguiam, aparentemente, critérios jornalísticos. A primeira peça desse noticiário dava conta de um despiste do secretário de estado da juventude em Lisboa. O carro dele tinha caído ao rio e ele estava acompanhado de uma namorada, apesar de ser casado, portanto seria um caso extraconjugal. Esse secretário de estado exigiu que a SIC o convidasse no dia seguinte para o Jornal da Noite, para ele desmentir a notícia desse concurso. Repare o limite das fronteiras. Depois, em tribunal, ele ganhou um processo e a SIC teve que o indemnizar.
No âmbito do jornalismo policial desenvolveu-se também muito o jornalismo judicial. E depois houve um programa que era feito a base de um polígrafo (detector de mentiras) e convidava pessoas que tinham sido condenadas em tribunal. O primeiro programa foi um dos que obteve maior audiência em Portugal nos 10 anos que eu analisei. O convidado era um padre que tinha sido acusado, num processo de pedofilia, de ter morto um afilhado. Ele foi a esse programa e o polígrafo disse que ele era inocente. As pessoas fizeram sessões públicas para ver o programa, que chegou a ser debatido na Assembleia da República. O apresentador era um jornalista.


POR QUÊ ISSO NÃO OCORRIA ANTES DA TELEVISÃO PRIVADA SURGIR EM PORTUGAL?

Isso corresponde a uma tendência europeia, porque a televisão, em tempos de monopólio, sem concorrência, não era uma televisão espevitada. Era uma televisão de géneros muito rígidos. Por exemplo: nesses dias eu estive a fazer uma entrevista com a jornalista Gisela Machado que escreveu o livro “O Primeiro Dia Europeu de Portugal”. A obra é o tema da tese dela sobre a mediatização que a RTP fez quando Portugal aderiu à Comunidade Económica Europeia. A cerimónia ocorreu no dia 12 de Junho de 1985 e um caso muito engraçado é que a RTP transmitiu 15 horas da assinatura do tratado de adesão. Você pensa assim: "nossa! 15 horas de mediatização significa que nos dias anteriores o noticiário deve ter dado muita ênfase a isto, deve ter tratado isso exaustivamente!" Mas não, não tratou, nem promoveu, pois ela não precisava. Hoje disparava em tudo que é noticiário até para abrir expectativas para cobertura. Mas em 1985 a RTP não se preocupou com essa abertura de expectativas para as audiências.


ISSO ESTÁ LIGADO À DIVULGAÇÃO DA TV. A LÓGICA DA TV PRIVADA MUDOU ESSA VISÃO DA PUBLICIDADE?

Mudou substancialmente o entendimento das audiências. O canal generalista que tinha uma fonte de financiamento da publicidade começou a ter esse entendimento que é: eu preciso ter índices de audiência, portanto eu tenho que seduzir os públicos.


HOUVE ALGUMA INFLUÊNCIA NA LINHA EDITORIAL DOS TELEJORNAIS A PARTIR DO MOMENTO EM QUE AS TELEVISÕES PRIVADAS ENTRARAM EM OPERAÇÃO?

Eu não estudei isso no doutoramento, mas sim na tese de mestrado, e constatei que, logo em 92, na fronteira do aparecimento, houve muita influência. O mais interessante é que a audiência influenciou para desalojar a informação do horário nobre.


O PÚBLICO DEIXOU DE SE INTERESSAR PELA INFORMAÇÃO?

Ou foram os programadores que acharam que o público interessava-se pelo entretenimento? Essa é minha grande questão. Eu acho que as pessoas não desinteressaram-se pela informação, mas acho que os programadores estão tão envolvidos com o entretenimento e com o impacto que ele tem junto às audiências, que deixaram de investir na informação. De 93 a 95 os programas de informação semanal ocupavam partes do horário nobre. Eles iam para o ar por volta das 22h. Entretanto, a SIC tinha a informação diária, a informação semanal e depois tinha como oferta permanente, ao nível de entretenimento, as novelas da Globo. Foi graças às novelas da Globo que a SIC conseguiu conquistar o horário nobre, com uma novela que se chamava Mulheres de Areia. A SIC retirou o contrato de exclusividade que a RTP tinha com a Globo e a RTP teve que trabalhar com outras produtoras. A SIC, quando ganhou as audiências, foi juntando às novelas os sitcoms (comédias de situação). Bom, se eu tenho uma oferta televisiva em que todos os dias eu ofereço novelas da Globo, e se eu descubro outro filão que traz audiências, que são os sitcoms, eles começam a ser programados todos os dias. Jornal da Noite, novelas da Globo e sitcoms significam que a informação semanal, a partir de 97, começa a ter um recuo de uma hora. Passam a começar mais tarde, por volta 23h, 23h30. A RTP acompanha a mudança. Até que, em 2000, a TVI estreia o Big Brother e começa a ter grande popularidade, somando a isso o sucesso da ficção nacional. E o que faz a SIC? Acrescenta a ficção nacional às novelas da Globo e às sitcoms. Qual é o espaço que fica para informação semanal? Nenhum. Até que o ultimo programa que sobrevive começava por volta da 0h30, que era o Hora Extra. E desapareceu! Porque o entretenimento, nomeadamente as novelas - primeiro as brasileiras, depois as portuguesas - desalojaram a informação semanal do horário nobre, com excepção do canal público que continuava a apostar, mas não aposta mais. Agora você pode perguntar: "mas os portugueses não se interessam pela informação semanal?" Eu acho que nós temos que inverter o raciocínio. Os portugueses não se interessam por essa informação semanal que não mudou desde 1993. É a mesma. Enquanto isso, no entretenimento tivemos uma evolução grande, porque houve um investimento permanente. Se você assistir um programa de entretenimento que se fazia há 4 anos acha anacrónico e diz: "meu Deus, como é que eu conseguia assistir a isso?"


ENTÃO OS PROGRAMAS DE INFORMAÇÃO SEMANAL NÃO EVOLUÍRAM?

Não evoluíram. Você vê um debate agora e não lhe choca ao ver, em termos de emissão, o que se fazia há quatro, cinco anos. As evoluções são mínimas. Não sentimos grandes diferenças.


COMO ESSES PROGRAMAS PODERIAM TER EVOLUÍDO?

Cenários, visual, temas, interlocutores. Nós trabalhamos sempre com os mesmos interlocutores, que são sempre da elite. Não faz mal ser a elite, o pior é que a elite é sempre a mesma, não há uma mudança. As pessoas que nós víamos em 2003 eram as que nos víamos em 1993. Não há paciência para ouvir sempre as mesmas pessoas. O discurso já é muito conhecido. Por quê o Big Brother teve popularidade? Porque, por um lado, explorava o filão da vida privada - era como se fosse o buraco da fechadura -, mas há outro filão que é muito interessante no Big Brother, que é a interactividade. Os programadores disseram às pessoas do outro lado do ecrã que elas tinham o poder de decidir o desenvolvimento do programa. Mas na informação não. Você está num sofá, a ver um programa de informação, e o canal não lhe dá qualquer oportunidade, ou dá oportunidades muito reduzidas, de participar, por exemplo, através das sondagens telefónicas.


COMO PODERIA HAVER ESSA PARTICIPAÇÃO?

Por blogs… Há programas no cabo que o apresentador tem um computador portátil à frente a há um endereço na Internet por onde ele recebe perguntas. Isso é uma forma simpática. Mesmo eu não participando, esse eu catódico duplo faz com que a pessoa reconheça que também tem lugar para participar. Não é só a palavra dos senhores que estão no platô que vale.


VOCEÊ TOCOU EM OUTRO PONTO IMPORTANTE QUE É O MUNDO DA INTERNET COMO UM INSTRUMENTO DE INTERACTIVIDADE TAMBÉM COM A TELEVISÃO. O FUTURO DA TV, NO ESPAÇO JORNALÍSTICO, PASSA PELA INTERNET?

Muito! Sem duvidas! Só que os jornalistas ainda não perceberam, por várias razões. Eu acho que há uma aprendizagem que se deve fazer para todos nós tomarmos consciência que há evoluções que precisam ser rapidamente absorvidas. Há uma pergunta básica que eu faço que é: para onde é que foram as pessoas? As pessoas que não vêem informação se calhar também não estão a ver novelas, se calhar estão na Internet. Nós temos gerações que são mais bem informadas, têm uma informação mais elevada. Por quê os canais generalistas têm uma audiência média cada vez mais diminuta? Esse tipo de pergunta que devemos colocar. Também temos que perceber que a Internet é como a lógica do ovo. Não existe mais o trevo que era a imprensa de um lado, a rádio de outro e a televisão do outro. Há um ovo no centro do qual está a Internet. É essa lógica que a informação deveria seguir, mas entretanto, ao nível do audiovisual, o primeiro a apanhar essa lógica foi o entretenimento, através de programas como o Big Brother. Ainda não deram conta do quanto isso poderia ser proveitoso para a própria informação televisiva.


MUITAS PESSOAS QUE ESTÃO SENDO FORMADAS E VÃO ENTRAR NO MERCADO DE TRABALHO JÁ UTILIZAM ESSES INSTRUMENTOS. ELAS PODEM MUDAR ESSE PERFIL QUE IMPERA HOJE?

Eu acho que não vão ser os canais que vão puxar as pessoas para, mas vão ser as pessoas que vão puxar os canais para. É a única forma de nós evoluirmos ao nível de informação televisiva. Isso ainda não existe no mercado. Isso existe nas academias. Nas televisões não existem olhares que atribuem a importância ao digital.


VOCÊ CONCLUI QUE A INFORMAÇÃO SEMANAL FOI PRETERIDA NA GRELHA DE PROGRAMAÇÃO, EM RAZÃO DO ENTRETENIMENTO. A INFORMAÇÃO DIÁRIA TAMBÉM SOFRE COM ISSO? HÁ UM RISCO DOS TELEJORNAIS DIÁRIOS TAMBÉM FICAREM EMPOBRECIDOS?

O risco aparentemente pode ser menor, mas não é menos visível. A informação diária ainda é concebida como a missa das 20h. É sagrada. Nós temos essa informação cada vez mais estendida. No início dos anos 90 os telejornais diários tinham uma duração de meia hora, agora duram de 60 a 80 minutos. E o que colocamos dentro desse tempo? Colocamos informação e depois colocamos peças que são de info-entretenimento. São peças que incidem na vida quotidiana, mas que exploram muito os sentimentos e a vida íntima das pessoas. Aí nós podemos ver que a informação está a serviço do voyeurismo. Não é bem informação, está mais para o lado do entretenimento. Isso acontece por causa dessa tal contaminação


O FILÓSOFO FRANCÊS GILLES LIPOVETSKY FALA JUSTAMENTE NA QUESTÃO DO NARCISIMO. PARA ELE ESTA SERIA A ERA DE NARCISO. ISSO REFLECTE NA TV?

É verdade, mas eu acho que não faz mal que na informação nós exploremos as emoções, porque elas são constitutivas de entendimento, porque nós necessitamos sempre de elos. O que é a palavra conhecer? No latim é cum + aliquo, é estar com alguém, portanto nós só conhecemos se estivermos com alguém. Não há um conhecimento isolado. Como se estabelece um consenso? É uma coisa que está com sensações, ou seja, essa componente sensitiva, de emoções, é uma componente que deve ser intrínseca à informação. E não faz mal ela estar lá. Agora, o que faz mal é nós explorarmos gratuitamente a dor de alguém, vermos na televisão coisas que nos sentimos quase envergonhados. É essa diferença que urge fazer. Mas essa necessidade de nos vermos ao espelho e de encontrar na televisão explicações de índole pessoal não é uma coisa maléfica. É uma coisa que nos ajuda a encontrar códigos para nossa vida, do quotidiano.


PARA ENCERRAR EU GOSTARIA QUE VOCÊ FIZESSE UM APANHADO GERAL SOBRE OS DEZ ANOS DE TELEVISÃO EM PORTUGAL, QUE FORAM ALVO DO SEU ESTUDO.

Eu acho que, em linhas gerais, nós temos uma informação que não está muito ligada às tendências do social. A informação semanal em Portugal evoluiu por ciclos. Houve ciclos de política, de jornalismo policial, dos programas desportivos. Os canais de televisão operam por clonagem dos outros e não por olhar a realidade. Essa tendência é clara. Depois, quem é que os jornalistas valorizam? Eles valorizam sobretudo interlocutores ou actores que fazem parte do poder dominante. Em primeiro lugar o poder politico, e depois há uma valorização de áreas profissionais privilegiadas, ou seja, destacam os académicos, os médicos, os economistas de grandes grupos, e depois um conjunto de interlocutores que tenham um poder simbólico, que tenham a ver com o capital mediático, ou seja, artistas de novelas, apresentadores de televisão, escritores conhecidos. Há uma desvalorização enorme, enorme, enorme, do trabalho manual. Para a televisão não existem agricultores, trabalhadores da indústria, artesãos. Essas pessoas não têm direito à palavra. Também o cidadão comum não tem espaço. Eu não posso falar como cidadã Felisbela, eu só posso falar se for como professora universitária. Eu com meu nome não valho para dizer o que eu acho das políticas do governo, por exemplo. Isso é muito grave, quando as pessoas não têm direito à palavra por elas próprias, por um direito à cidadania. Também não têm opinião e direito à palavra as crianças, os adolescentes, os estudantes. Quando nós falamos de infância, de problemas de educação, nós falamos sempre sobre, mas nunca falamos com. Outra tendência é que se as televisões tiverem que optar por informação ou entretenimento, optam por entretenimento.